Dicas Culturais

  • Filme - Vídeo - Violação de Privacidade

Páginas

Pesquisar este blog

sábado, 22 de maio de 2010

AS SUBVERSIVAS E SEDUTORAS AMAZONAS

A mitologia colocou em cena esse povo estranho, formado por mulheres-soldados aguerridas, que recusavam a autoridade masculina e encarnavam o avesso do que pregava a sociedade antiga ( Catherine Salles)


Diana, a caçadora, afresco, autor desconhecido, século I a.C.


As amazonas pertencem ao domínio da transgressão. Essas guerreiras mitológicas simplesmente desprezavam os valores femininos vigentes na Antiguidade. Por isso, os gregos as viam como um desafio a qualquer “lei natural” ou social. Mais ainda, como um mal encarnado e ambíguo, que causava repulsa e, ao mesmo tempo, seduzia os homens. De fato, elas tinham em si uma centelha revolucionária, capaz de virar pelo avesso todas as certezas da sociedade grega.
 No mundo real, a mulher era sempre um ser menor, e sua função essencial era parir os futuros cidadãos da Grécia. O homem e a mulher eram complementares, mas sua natureza, de acordo com a vontade dos deuses, era essencialmente diferente, daí serem considerados unicamente viris o trabalho no campo, a caça, o treino desportivo e a guerra. Por extensão, as gregas também eram alijadas do poder político.

As virtudes femininas eram a obediência e o pudor. Um texto de Aristóteles evoca bem o modo como os gregos justificavam pela ordem natural as relações entre sexos e define por antítese o que seria impossível para a mulher: “A natureza criou um sexo forte e um sexo frágil. O primeiro, em razão da sua virilidade, está mais apto a afastar os adversários, o segundo está mais apto a realizar-se sob a guarda masculina, devido a uma tendência natural para o medo. O primeiro traz para o domicílio os bens do exterior, o segundo vela sobre o que está em casa”.
O texto prossegue da seguinte forma: “Na divisão do trabalho, o primeiro, menos afeito ao descanso, encontra prazer no movimento. O segundo está mais apto a levar uma vida sedentária e não tem forças suficientes para a vida ao ar livre. Enfim, se os dois sexos participam na geração das crianças, o bem destas últimas irá exigir de cada um dos pais um papel particular: a mulher terá a função de alimentá-las, o homem, a de educá-las”.
 A amazona é aquela que recusa essa distribuição de competências, pois pura e simplesmente eliminou os homens de sua estrutura política e social. Na Ilíada, essas guerreiras são chamadas por Homero de antianeira (anti-homem). O prefixo grego anti, nesse caso, pode ter o sentido de “contra” o homem, mas também de “igual” a ele.

Representadas sempre como guerreiras e caçadoras, desde pequenas montavam cavalos (com as pernas abertas) e aprendiam a manejar o arco, o dardo, a espada e o machado de combate. Para atirar melhor, elas cauterizavam (ou cortavam) o seio direito, o que, para Hipócrates, “desloca toda a força e desenvolvimento para o ombro e braço”.
O nome das fabulosas criaturas vem dessa prática: a-mazos significa “sem seio”. Por alguma razão, porém, a iconografia disponível costuma mostrá-las com os dois seios intactos. Além do significado prático, a mutilação do seio tem um aspecto simbólico: elas permaneciam mulheres pelo lado esquerdo e tornavam-se homens pelo direito.
 As guerreiras veneravam Ártemis, que, como elas, habitava os espaços selvagens, recusava a sociedade dos homens e dedicava seus dias à caça. Os relatos antigos sobre esses lendários seres informam que sua sociedade era dividida geralmente em duas tribos, cada qual com sua rainha. Enquanto uma estava ocupada com a guerra, a outra permanecia sedentária, para proteger seu povo. Sua hipotética “cidade” chamava-se Themiscrya, situada além do mar Negro, às margens do rio Termodonte.
 As amazonas podiam fazer longínquas incursões. São atribuídas a elas invasões na Ásia Menor e na Grécia. Em uma delas, Myrina, à frente de 20 mil guerreiras a cavalo e 3 mil a pé, declarou guerra aos habitantes de Atlântida, tomou conta da cidade, massacrou os homens prendeu mulheres e crianças. Elas eram temidas por andarem armadas e em bandos, mas também porque, não aceitando a presença de homens em seu meio, acasalavam como os animais, desprezando as regras do casamento entre humanos. Uma vez por ano, se entregavam aos povos vizinhos e obrigavam os homens a ter relações com elas. Tudo acontecia aleatoriamente, na escuridão, de modo que não pudessem reconhecer seus parceiros. Eram elas que violentavam e “usavam” os homens.
 Quando nasciam as crianças, conservavam as meninas e matavam os meninos. Recusavam-se a amamentar as filhas, com medo de deformar os seios, e criavam-nas com leite de égua.
 Não conheciam a navegação nem a cultura dos cereais – daí vem a outra etimologia proposta para seu nome, a-maza também quer dizer “sem cevada”. Alimentavam-se de carne crua.



Aventuras pela História e pela literatura


Para os gregos, as amazonas não pertenciam apenas ao domínio da lenda. Muitos escritores procuraram emprestar fundamentos históricos às aventuras das guerreiras anti-homens.
 Heródoto consagrou-lhes inúmeros capítulos da obra Investigações. Segundo ele, quando os gregos conduzidos por Hércules voltaram para tomar o cinturão de Hipólita, trouxeram amazonas como prisioneiras. Elas reagiram em dado momento, mataram-nos e jogaram os corpos no mar.
 Ignorando tudo o que dizia respeito a navios e navegação, as mulheres deixaram então que a embarcação seguisse à deriva até encalhar no território dos citas, que viram no episódio uma ameaça de invasão. Partiram para o ataque, até perceber que os “inimigos” eram mulheres. Decidiram, então, “domesticá-las”, para gerar filhos corajosos. As amazonas aceitaram se unir aos jovens citas, mas logo tomaram as rédeas da coabitação: eles foram obrigados a deixar seu país e suas famílias para acompanhá-las até suas terras.
 As amazonas foram reencontradas em textos históricos posteriores. Por três vezes, entre 331 e 324 a.C., os exércitos de Alexandre, o Grande, encontraram as guerreiras. Sua rainha, Talestris, foi ao encontro do rei macedônio e passou 13 noites com ele.
 Em 63 a.C., o general romano Pompeu, perseguindo o rei Mitridates, chegou ao pé das montanhas do Cáucaso, onde enfrentou os albaneses. Após o combate, encontrou sobre o campo de batalha escudos leves e sandálias femininas. De acordo com algumas fontes, entre os prisioneiros de guerra encontravam-se inúmeras mulheres que, por falta de termo melhor, os romanos chamaram de amazonas.
 Nestes dois últimos exemplos, há uma grande distância entre as mulheres-soldados e as lendárias amazonas. Mas, penetrando em terras distantes, onde mal conheciam os povos e costumes, os ocidentais enfrentaram exércitos locais em que as mulheres combatiam como os homens – por falta de outra referência, gregos e romanos viram nelas a encarnação das guerreiras mitológicas.
 Na literatura, as amazonas foram protagonistas de algumas histórias imortais. Em uma delas, Teseu, tendo acompanhado Héracles (ou Hércules) em sua expedição até o reino das guerreiras, foi seduzido pela beleza de uma delas, Antíope. Sob o pretexto de lhe mostrar seu navio, ele a levou a bordo e zarpou imediatamente rumo a Atenas.
 Furiosas com o rapto, as amazonas atacaram a cidade tempos depois. Teseu conseguiu convencer seus compatriotas a enfrentar o temível exército feminino, e começou uma batalha aos pés da colina de Pnyx. No começo, elas levaram vantagem e perseguiram os adversários fora dos muros de Atenas. Depois os homens adquiriram vantagem e venceram a guerra. Antíope morreu atravessada por um dardo durante o conflito. Ela tivera tempo de dar a Teseu um filho, Hipólito, que herdou da mãe o gosto pela caça e era muito casto. – C. S.

domingo, 2 de maio de 2010

PEQUENO TRATADO DAS GRANDES VIRTUDES - APENAS UM BREVE COMENTÁRIO

AS VIRTUDES NECESSÁRIAS PARA SE PENSAR A VIDA (Gustavo Dainezi)
Uma ode às virtudes, que tanto fazem falta no mundo atual, a obra Pequeno tratados das grandes virtudes, de Andre Comte Sponville, é uma grande obra de reflexão filosófica e uma leitura belíssima e cheia de profundidade. Um percurso que não abrange nem todas as virtudes, nem totalmente cada uma das que se propõe a analisar. Mas, certamente, é uma experiência que proporciona um amplo engrandecimento pessoal.
São, ao todo, dezoito virtudes virtudes as analisadas. Mas, a primeira delas, a polidez, é considerada como a mais baixa virtude existente. Ou talvez, nem possa ser considerada uma virtude. A polidez, segundo Sponville, é a educação formal do dia a dia. Mas, não é algo agradável e respeitoso, e sim, um falseamento de respeito, uma moral secundária e artificial. Ou então, uma negação da moral.
Outro exemplo a ser destacado é a sua ponderação sobre a coragem. O refinamento de reflexões sobre o fato desta "virtude" ser indesejável. Este capítulo esmiuça a noção de coragem e coloca-a em relação com todas as outras virtudes. Estreitamente ligada à esperança e ao medo, a coragem é uma virtude do presente, uma virtude em ato. E é virtude na medida em que é prudente. É inútil ser corajoso quando a medida da coragem é incompatível com o bem que ela proporcionará. Sendo assim, Sponville tira da coragem seu status de, necessariamente, boa.
O autor vai longe em seus pensamentos. Fala em ordem crescente. O Tratado é também uma hierarquização das virtudes, da menos nobre, menos virtuosa à mais completa de todas. Seguem-se fabulosos textos sobre a justiça, a generosidade, a compaixão, a tolerância, a doçura, a misericórdia, entre outras, até chegar o maior texto do livro: o que menciona o AMOR.
O caminho para o AMOR, no entanto, não é simples. No Tratado - e esta é uma leitura que, se feita na ordem dos capítulos é muito mais proveitosa - são dezesseis as virtudes intermediárias, que prometem mudar radicalmente a forma que pensamos nossas vidas, nossas atitudes.
A fidelidade, por exemplo, é uma das "virtudes" tratadas por Sponville. É, para ele, o princípio das virtudes. "O amor infiel não é o amor livre: é o amor esquecediço, o amor renegado, o amor que esquece ou detesta o que o amor é, e que, portanto, se esquece ou se detesta".
Na primeira página do último, e mais belo capítulo do livro, Sponville diz: "O Amor é o próprio bem". E, ao longo de setenta páginas, nos pega pela mão para explicar o sublime ato de amar, a complementaridade entre virtude e dever, ao passo de sua mútua anulação: virtude é liberdade: dever é coerção. Sendo assim, quanto mais virtude, menos dever.  E quando há o amor, nem virtude, nem dever. A moral sai de campo, porque agora existe o sumo bem. Aquele que só leva ao caminho certo.

OLHO POR OLHO - A VINGANÇA SOB UMA PERSPECTIVA FILOSÓFICA

Dentre as questões que afligem o homem e são alvo da filosofia, a vingança é um tema controverso que traz discussões na forma de agir perante os sentimentos desenvolvidos por ela. Não raro, as respostas para tais questionamentos são contrárias.
Aristóteles, que tanto versou sobre a vida que a vale a pena ser vivida, por exemplo, diz que devemos nos vingar. Seu apreço pela justiça e sua concepção finalista sobre as coisas nos leva a esta conclusão. O homem não pode conceber a injustiça. E se o governo sob forma de Justiça ou da Polícia, não pode reparar um eventual dano causado, este papel deve ser exercido pela pessoa que sofreu o dano. "A vingança é uma reação natural das capacidades morais" (Arthur Meucci, autor do artigo que colocarei no ar numa outra ocasião).
Já os estoicos defendem que devemos passar inertes a questões que nos tiram do sério, defendendo o o belo estado da ataraxia, sem perturbações no espírito e na alma. A ira, de acordo com Sêneca, tem uma forte ligação com a esperança, o que ele acredita ser expectativa irreal sobre o mundo. Seria, portanto, um conflito entre o mundo real e o mundo desejado.
Será que devemos nos vingar? O que pode trazer de mal guardar para si esses sentimentos ou, ao contrário, alimentá-los e colocá-los para fora.
Vamos refletir sobre o assunto. É assunto para pensar muito... Em breve, postarei o artigo na íntegra! Isto foi apenas um ensaio. Mas pensemos...

Herodias's revenge's - Juan de Flandes - c. 1496

Explicação da obra acima: Herodias, que não gostava de João Batista, convenceu sua filha Salomé a pedir ao rei Herodes de Antipas - que havia prometido a ela o presente que quisesse - a cabeça dele.

quarta-feira, 28 de abril de 2010

BREVE REFLEXÃO SOBRE A VERGONHA - VISÃO FILOSÓFICA

A palavra “vergonha” é uma destas palavras ambíguas e é de uma peculiar forma de ambigüidade. Tem ao menos dois sentidos, sendo que um designa um sentimento moral positivo, mas outro negativo - tudo dependendo do contexto sentencial em que ocorrem. 
Consideremos (1) “Ele sentiu uma grande vergonha de ter feito o que fez”. Supondo que o indivíduo em questão realmente tenha se sentido envergonhado por uma ação praticada, a vergonha aqui é um sentimento moral positivo, pois é um efeito produzido pelo reconhecimento de culpa acompanhado de arrependimento. (Neste caso, a "vergonha" não pode ser considerada um caso patológico, pois houve seu reconhecimento e consequente arrependimento, aliás, o ato em si já foi praticado, desde o início, existindo a consciência do erro, mas a intenção não era causar dano e, sim consertar algo que se encontrava errado, porém, começar de forma errada, não conserta erro algum, muito pelo contrário, geralmente, a situação acaba ficando pior - grifo meu)
Suponhamos agora (2) “Ele não sentiu a menor vergonha diante de tudo aquilo que fez”. Era esperado que o indivíduo que praticou uma ação vergonhosa sentisse vergonha pelo que fez. Mas a não-produção do referido efeito é uma indicação de que ele não se sentiu culpado e, por não ter se sentido assim, não experimentou nenhum arrependimento. 
Segue-se, portanto, que o sentimento de culpa leva à vergonha e esta ao arrependimento. 
Temos de fazer uma distinção entre culpa e o sentimento de culpa. Aquela tem um caráter objetivo, mas este tem um caráter subjetivo. Tanto no sentido ético como no jurídico, uma alegação de culpa pode e tem que ser provada, mas o sentimento de culpa simplesmente não pode ser provado, embora possa ser inferido por um sinal: o rubor da face indicando vergonha. 
E é justamente por isso que um indivíduo pode ser culpado e sentir vergonha, mas pode não sentir e ser culpado e pode ainda não ser culpado e sentir. 
Na peça de Sófocles Édipo-Rei, a personagem principal Édipo mata Laio, seu pai, mas não sabendo que o indivíduo morto em um duelo era seu pai; casa com Jocasta, sua mãe, sem saber que aquela linda mulher era sua mãe. 
Devemos considerá-lo autor de um parricídio e de um incesto? Não há dúvida que ele praticou um homicídio, mas este teve lugar num duelo, cabendo, portanto, a alegação de legítima defesa. Além disso, na Grécia antiga os duelos não eram punidos por lei, eram considerados uma questão de honra. 
Não há dúvida de que ele casou com sua mãe, mas não teve a intenção de cometer um incesto ao desposar a rainha de Tebas. Talvez fosse cabível a alegação de um incesto culposo, mas jamais doloso. Mas sendo culposo ou não, Édipo se sentiu culpado pelo ato incestuoso, bem como pelo homicídio de Laio. E em conseqüência disto, furou seus olhos e passou a vagar pelo mundo como um mendigo. 
É conhecido o caso daquele indivíduo que, padecendo de um grave transtorno mental, vai a uma delegacia de polícia e confessa ter cometido um homicídio que não cometeu. Ele não é objetivamente culpado, mas isto não o impede de se sentir culpado e sentir vergonha pelo ato que alega ter praticado. 
Por outro lado, sabemos que um psicopata, mesmo tendo cometido diversos crimes hediondos, nunca se sente culpado e jamais se sente envergonhado. Considera-se que ele é definitivamente incapaz de ter sentimentos morais. 
Contudo, seria açodado considerá-lo um indivíduo imoral: ele não é um indivíduo moral nem imoral, porém amoral. Nem tampouco está além do bem e do mal, tal como o Zaratustra de Nietzsche: Ele está aquém do bem e do mal, tal como uma criança de colo. Porém, diferentemente dela, ele é um caso de internação e tratamento psiquiátrico. 
De tudo isso que dissemos, podemos concluir que a capacidade de sentir vergonha é uma das mais importantes feições do homem como ser moral, seja quando ele reconhece seus erros e se arrepende dos mesmos, seja quando olha à sua volta a se reconhece como um homem moral vivendo em uma sociedade imoral, de acordo com o título do livro de Reinhold Niebuhr: Moral Man and Immoral Society (Nova Iorque. Scribner’s. 1932). 
Entre nós, talvez ninguém tenha expressado melhor a referida condição do que Rui Barbosa nos inícios do século XX:
Sinto Vergonha de Mim 
Tenho vergonha de mim,
Pois faço parte de um povo que não reconheço
Enveredando por caminhos que não quero percorrer.
Ao lado da vergonha de mim,
Tenho pena de ti,
Povo deste mundo! 
De tanto ver triunfar as nulidades,
De tanto ver prosperar a desonra,
De tanto ver crescer a injustiça,
De tanto ver agigantarem-se os poderes
Nas mãos dos maus,
O homem chega a desanimar da virtude,
A rir-se da honra,
A ter vergonha de ser honesto. 
A que ponto chegamos! Os desonestos não sentem vergonha nenhuma; os honestos sentem, mas sentem vergonha de serem honestos!
Revista Jus Vigilantibus, Quinta-feira, 14 de maio de 2009
http://jusvi.com/artigos/39781
Angústia e Vergonha

terça-feira, 27 de abril de 2010

O DIABO SÃO OS OUTROS

Leitora compulsiva de revistas de Artes, Histórias, Literatura e afins, primeira coisa que leio numa publicação, é o editorial. Alguns valem a pena, e, muitas vezes, são mais elucidativos que as próprias matérias. Abaixo, Editorial da Revista História Viva: grandes temas, "Sob a sombra do Diabo"
O Diabo é um bicho elusivo. É o cão, é o sapo, uma aranha. Está no corpo do homem pecador e da mulher sedutora. No discurso herético da Idade Média e na mão de ferro do ditador moderno. Ao longo da história, assumiu formas variadas. Chamavam-no também de Belzebu, Satã, Lúcifer, Anticristo. Entre os menos conhecidos, há o registro de certo Pazuzu, um dos demônios mais antigos, da Mesopotâmia. Entre nós, brasileiros, ele atende também pelo nome de Tisnado, uma das muitas variações referidas em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Quem se deu ao trabalho de contar, encontrou mais de 15 milhões de apelidos em todas as épocas. Por vezes, confundindo-se com a idéia do Mal, parece onipresente. Está nas perseguições da Inquisição, nas guerras religiosas, na caça às bruxas, nas tentativas de extermínios de populações, na tortura, nos assassinatos promovidos por seitas contemporâneas.
Ditadores costumam demonizar seus inimigos, que, nessa condição, são passíveis das mais cruéis punições. Líderes políticos e religiosos também seguem o mesmo caminho. Bush identificava um Eixo do Mal para justificar a caçada a Bin Laden; este, por sua vez, comparava os presidente dos Estados Unidos ao Grande Satã - eles podem não estar de acordo em nada, nas talvez se entendam, pois usam a mesma linguagem.
O Diabo é um bicho alusivo, sim, mas, qualquer que seja sua aparência ou nome, ele se manifesta de maneira inconfundível na intolerância. Talvez seja este o denominador comum das forças do Mal: a rejeição ao que parece diferente: àquilo que não podemos ou queremos compreender. Para resumir: ao outro. "O inferno são os outros", disse o filósofo francês Jean Paul-Sartre. Parafraseando a famosa tirada existencialista, podemos dizer: o Diabo são os outros. (Oscar Palagallo, Editor)

O CANTO DAS SEREIAS - PARA RELAXAR

Expressão da sedução ilusória tem origem em mito homérico (Márcio Cotrim)
A expressão "canto da sereia" designa a proposta ilusória, promessa enganosa, sedução, o se cumpre pelo oposto daquilo que é esperado. Seu berço é a mitologia grega. Meio mulher, meio peixe, sereias atraem navegantes com cantos de doçura e encantamento, que os levavam ao êxtase e à submersão para não perder a música que os fascinava.
De acordo com Homero, de tal modo Ulisses temia as sereias na viagem de Tróia para Ítaca que mandou seus marinheiros taparem os ouvidos com cera e se amarrassem aos mastros. Que lhes ouvissem o canto, tudo bem, mas não fossem arrebatados por ele. Diz a lenda que, se alguém se mostrasse insensível ao fascínio, quem morreriam eram as sereias. No mar Egeu, haveria cemitérios com ossadas dos marinheiros que sucumbiram à sedução. Quanta gente escuta o canto da sereia, não põe cera dos ouvidos e afunda!  A evidente condenação masculina ao encanto feminino contida no mito não apaga o alerta que ele expressa, a ouvidos fisgados por lindas e maravilhosas sereias, sem que  percebam a fragilidade de toda estabilidade e certeza. Na maioria dos casos, ledo engano, vã quimera, doida ilusão...


DICA DE LEITURA






segunda-feira, 26 de abril de 2010

O MUNDO QUE INVENTOU A POESIA ÉPICA

A literatura da Grécia Antiga se constitui basicamente de poeisa, numa época em que a palavra é indissociável do canto e da dança. Para os gregos, voz, gesto e música de aliam, e a escrita desempenha papel secundário. É assim que, na maioria das vezes, a produção, a emissão e a recepção literárias se confundem e acontecem em um só momento. Homero e Hesíodo são os principais nomes da poesia na Grécia Antiga, marcadamente épica. Ilíada, de Homero - considerada a origem primeira da poesia no Ocidente no século VIII a.C. -, pode ser lida em português por meio de três diferentes traduções: a de Odorico Mendes, no século XIIX, a de Carlos Alberto Nunes, no século XX, e a de Haroldo de Campos, no século XXI.
Ulisses e as sereias - Herbert Draper

POESIA SE ALIA À MÚSICA E À DANÇA (André Malta Campos)
Uma Leitura de Homero - Sir Lawrence Alma-Tadema, 1885
Os primeiros registros da produção poética dos gregos antigos apareceram nos séculos VIII e VII a.C., com a reintrodução da escrita, agora alfabética e apta à notação complexa dos sons. É a partir desses registros que estudamos a literatura grega, embora, naturalmente, algum tipo de sistema literário já estivesse configurado, com a presença de emissores, de um lado, e receptores, de outro, ambos os grupos inseridos numa longa e rica tradição, que remontava ao segundo milênio antes da nossa era. Foi a escrita, entretanto, que possibilitou - a princípio, timidamente, e  depois, decisivamente - a conversação, a transmissão e a difusão de uma pequena parcela desse enorme material, à qual hoje temos acesso.
Qual era o quadro geral da literatura produzida pelos gregos, por quem e para quem ela era criada e em que contextos? Em relação ao período anterior ao século V - mais bem documentado, pelo menos no que diz respeito a Atenas -, sabemos muito pouco para responder com relativa certeza a tais questões. De toda essa produção, que era, sobretudo, de poesia, conservou-se aquilo que era feito para perdurar, o que tinha forma e função perenes. Já os possíveis registros em letra de outras formas de expressão (inclusive poéticas) foram se perdendo, muitos deles ao longo do caminho, o que nos obriga a uma boa dose de investigação e imaginação.
Sabemos seguramente que a poesia grega antiga pertenceu a uma época em que a palavra era indissociável do canto e da dança. A escrita, ainda que existente, desempenhava papel secundário. Uma cultura de livros, escritores e leitores é impensável nesse contexto, porque a técnica da escrita demando esforço e tempo de familiarização, além da disponibilidade de materiais e suporte adequados, com seu manuseio por copistas interessados. E, uma vez superados esses obstáculos, devemos nos perguntar com que finalidade um grego pensaria em apresentar por escrito seu trabalho ou o trabalho alheio, se a voz era o meio de comunicação mais eficiente e apreciado. Se hoje, para nós, a autoridade provém em grande parte do domínio da palavra escrita, na Grécia Antiga, ao contrário, a autoridade máxima era a autoridade da palavra emitida sem auxílio da notação gráfica, mas da palavra desempenhada. Na prática, isso implica dizer que na Grécia Antiga, como em outras culturas ágrafas ou orais, na maioria das vezes a situação da produção, da emissão e da recepção literária se confundiam num só momento, com a voz se aliando ao gesto e à música para criar um ambiente de envolvimento e suspensão.
O arrebatamento, nesse contexto, não é consequência da expressão nova e pessoal, que fascina aquele que procura o ainda não ouvido. O envolvimento se faz pela satisfação da regra e do costume - ainda que cada desepenho seja único e iniigualável, e, portanto, possa ser considerado sempre novo. Trata-se assim, de uma literatura oral tradicional, com parâmetros principais pré-estabelecidos, que asseguram a imediata comunicação. Mais do que isso, essa literatura - como as demais literaturas, em culturas afins - almeja ter um papel claro dentro da comunidade, para a qual se volta de bom grado, sem se importar com a confissão íntima, tão mais valiosa quanto mais pessoal. Nesse sentido, podemos falar sem medo em literatura social, porque é feita pensando-se no coletivo, transmitida na presença de grupo e voltada para os anseios e preocupações da comunidade. A noção de autoria não faz muito sentido numa cultura assim, porque é o legado comum, colocado à disposição de todos, que a molda e a torna característica. Nesses grupos, do mesmo modo, ainda que a fruição solitária de uma peça literária fosse possível, ela certamente não era desejável, porque essa peça fora feita para uma apresentação pública, trazendo marcas às vezes muito claras dessa preocupação com o patrimônio comum.
É com essas considerações iniciais em mente que devemos analisar a produção literária grega - basicamente poética - entre o começo do século VIII e o início do V, que denominamos convencionalmente de período arcaico, pois, do ponto de vista teleológico, é o que procede o período clássico, correspondente aos séculos V e  IV a.C. No período arcaico dois gêneros de destacam - o épico e o lírico - sem que possamos determinar nenhuma relação de anterioridade entre eles: os dois certamente se enraízam em uma época bastante remota e tiveram um longo desenvolvimento que não recebeu registro, uma vez que a civilização micênica, que dominou essa região do Mediterrâneo entre os séculos XVI e XII a.C., desapareceu levando consigo sua escrita silábica, chamada linear B, deixando a Grécia iletrada por mais de três séculos. Nesse silabário mesmo, decifrado no século passado, temos apenas anotações administrativas, sem importância literária.
A épica se caracteriza, em linhas gerais, pela narrativa extensa e em tom elevado, cuja ação se situa num tempo passado e indeterminado, que tem valor de princípio. O elementos dramático recebe em geral grande destaque, e à figura do narrador onisciente se juntam as inúmeras falas dos personagens, humanos e divinos. O metro adotado é o de seis pés, intitulado hexâmetro, longo e solene, e a articulação das frases é paratática, sem grandes torneios sintáticos. Os principais nomes nesse gênero são os de Hesíodo e Homero, a quem foram atribuídas na Antiguidade - principalmente ao primeiro - uma série de epopéias, muitas delas perdidas. Hoje, de modo consensual, são consideradas de Homero a Ilíada e a Odisséia (alguns poucos estudiosos postulam autorias diferentes), que totalizam quase 28 mil linhas, e de Hesíodo a Teogonia e Os trabalhos e os dias, bem menos extensos: juntos não somam mais de 2 mil versos.
A lírica grega, ao contrário da épica, é marcada por uma grande diversidade, temática e formal. Com relação ao seu conteúdo, podemos dizer, em linhas geraiss, que ela se pauta por uma forte relação com a atualidade, constratando assim com o afastamento temporal característico da maior parte da epopéia. Ao mesmo tempo, o gênero se deixa impregnar por um elemento dramático às vezes não desprezível (inclusive do passado), e adota em vários momentos o caráter reflexivo que é traço importante da poesia homérica e hesiódica. Parte dessa poesia também se volta pra o registro baixo, exercitando-se no mal-dizer, na sátira e na paródia. Certo é que, na extensão, o poema lírico tende à brevidade, embora - nos casos narrativos - pudesse chegar a algumas centenas de versos. Os metros são inúmeros, do austero elegíaco (primo irmão do épico) aos mais populares e rápidos jambo e troqueu, sem mencionar aqueles abertamente melodiosos, próprios da canção festiva, composta para a apresentação solo ou em coro, e que recebia nome conforme a situação  a que se destinava. A transmissão direta desses poemas e, com algumas exceções, o que temos à disposição são fragmentos - composições que nos foram transmitidas parcial e indiretamente por outros autores, ou que vamos conseguindo desenterrar, já em estado precário. Os principais nomes são os de Arquíloco, Safo e Píndaro.
Toda essa produção não era composta numa única língua uniforme. Desde cedo os gregos se acostumaram a associar certo tipo de poesia a um dialeto específico. Assim, a poesia épica era composta predominantemente em jônico, um dialeto falado na parte central da costa da Ásia Menor (atual costa turca); a poesias lírica, se escrita em metro elegíaco, seguia também o uso do jônico, assim como o faziam o jambo e o truqueu: a poesia coral era falada majoritariamente no dialeto dórico, de Esparta e outras regiões de colonização dória, ao sul; e outra parte da lírica era composta em dialeto eólico, característico da ilha de Lesbos e vizinhanças, na região nordeste do Mar Egeu. O local de nascimento, portanto, não determinava o dialeto em que o compositor iria fazer seus poemas, e as diferenças não atrapalhavam a compreensão e a interação entre os falantes do grego. Com o crescimento do poderio de Atenas, no século V, o dialeto ático (uma evolução do jônico) se estabeleceu como língua literária e acabou sendo empregado por tragediógrafos como Sófocles (nas partes faladas das peças, e não nas cantadas), por oradores como Demóstenes e por filósofos como Platão e Aristóteles.
Para além dos temas e dos fins específicos, que visão de mundo nos apresenta toda essa produção literária que se estende do século VIII ao V? O elementos essencial é a presença do mito, tomado não no sentido de história fantástica ou pitoresca, mas num sentido anterior e mais profundo, em que expressa uma visão de linguagem - potente e iluminada, dom da divindade - e daquilo que ela tem o poder de iluminar, as relações entre os homens e os deuses. Sendo assim, podemos dizer que os temas de que tratam os poetas sempre nos remetem, de maneira mais ou menos direta, a uma compreensão muito particular do uso da palavra poética e do mundo em que vivem. Essa palavra não pertence originalmente ao homem, mas lhe é conferida, como dádiva, pelas musas, as deusas do canto e da dança, filhas de Zeus e de Rememoração - filhas, portanto, do poder ordenador supremo e da manutenção da tradição viva.
Essa relação entre musa e cantor, por sua vez, exemplifica a maneira pela qual são vistas todas as relações no mundo: como relações entre homens e deuses. É nesses termos, portanto, que são trabalhados os temas abordados pelos poetas - não através da interiorização, da abstração conceitual, mas por meio da exteriorização e do exame das imagens concretas, que sinalizam o mode de agir dos deuses. Por isso não é possível ler esses poemas sem esbarrar ora na figura de um deus, ora na reflexão sobre a condição divina, ora na indagação sobre as relações entre as divindades e os homens, ora ainda na afirmação pessimista sobre o estatuto humano. Mesmo quando se fala sobre os homens apenas, a presença divina está embutida nessa fala, assim como um poema sobre os deuses fala diretamente ao homem em sua vida cotidiana. Pode-se dizer então, em resumo, que qualquer que seja o assunto central do poema, ele virá sempre enquadrado por esse modo de pensar que enxerga o mundo - o modo mítico -, porque é modo de pensar e enxergar o mundo que preside à própria confecção e enunciação do poema.
Oralidade, tradição, inserção social, distinção não muito clara entre gêneros, diversidade dialetal, formulação mítica: podemos enumerar assim as características principais da literatura grega pré-clássica, que repartimos de modo muito simplificado entre épica e lírica, e que, avessa à escrita, só chegou a nós por causa da escrita que com razão desprezou. Por meio desses seis traços principais podemos perceber com que diferença temos acesso hoje à poesia grega - lendo-a, e lendo-a como "literatura", classificando-a, traduzindo-a, interpretando-a racionalmente. O exame mais detalhado dos gêneros e de algumas obras só faz aumentar essa consciência do processo histórico, ao mesmo tempo em que reforça, para nós, a permanência de muitas das formulações poéticas feitas pelos gregos.